Guido Crepax
Mais conhecido pelas bandas desenhadas eróticas de Valentina, Guido Crepax era um amante de Jazz, como o atestam algumas passagens fugidias na sua vasta obra. O Jazz, no entanto, atravessa toda a história O Homem do Harlem, que teve uma edição em língua portuguesa brasileira no final dos anos 70 * .
Crepax concebia cada página como um todo, destacando aleatoriamente elementos parasitários (numa forma que parece apelar à (des)construção cinematográfica de Jean Luc Godard) que eventualmente se interpenetram, por vezes submetidos a um olhar de perspectiva inexequível. Os “quadrinhos” não possuem dimensão regular, e nem sequer são necessariamente rectangulares, e uma mesma figura pode atravessar toda a prancha. Crepax puxa a objectiva para um ou outro pormenor, parece distrair-se num detalhe – um olho, ou um sapato -, intercala elementos ou requebra-se numa figura.
Mestre do preto-e-branco (embora algumas pranchas tenham sido posteriormente pintadas, e mesmo se esta história contenha no original um raro colorido aguarela), o desenho de Crepax combinava o erotismo, a elegância e a luxúria (no tema) das histórias com a luxúria física anatómica do desenho (em movimento ou em posições instáveis, numa singular utilização da anatomia humana e da perspectiva), completados com detalhes de filigrana aparentemente insignificantes (a roupa ou objectos), mas que eram afinal integrantes do todo.
As legendas, os diálogos e as onomatopeias são da mesma forma irregulares, conjugando-se com o desenho, não como explicação ou comentário, mas como integrante gráfica da prancha.
Filho de um célebre violoncelista que tocou durante alguns anos na orquestra clássica de Scala, Guido Crepax (1933 – 2003) era um melómano, apaixonado pela música clássica, ópera e Jazz, sendo o autor de capas de discos de Jazz e música clássica, a par de trabalhos gráficos para a Shell ou a Dunlop na juventude. Era arquitecto de formação, embora nunca tenha exercido. Profundamente culto, Crepax era um amante do surrealismo e da pop art, enquanto politicamente se declarava marxista e trotskista. Uma das histórias de Valentina, originariamente publicada na Charlie Mensuel em 1972, é Viva Trotsky.
Ainda na juventude, Crepax começou por adaptar histórias da literatura de Robert Louis Stevenson ou H.G. Wells. Como desenhador de BD, ele estreou-se em 1965 com as histórias do super-herói Neutron para a revista italiana de BD Linus onde, pela primeira vez, surge Valentina, a namorada fotógrafa, que depressa destronou o protagonista. As histórias de Valentina passaram rapidamente para a Charlie e para outras revistas e ganharam autonomia, sendo os álbuns publicados em todo o mundo. O filão erótico levou-o a criar outros personagens como Giulietta, a partir da Julieta de Shakespeare, Belinda, uma heroína do rock'n'rol, as histórias sado-masoquistas de Bianca, adaptações livres do Marquês de Sade, ou Anita, inspirada na Anita Ekberg de La Dolce Vita de Federico Fellini.
Diria que, como poucos, Crepax foi um revolucionário da banda desenhada. Na concepção da página, na narrativa, na exuberância e diversidade de recursos e na originalidade da sua utilização, no uso da perspectiva, na linguagem, na forma, ele foi um inovador, fazendo da banda desenhada uma forma de arte autónoma, distinta do cinema, da literatura ou da pintura.
A página que se expõe pertence a L’Homme de Harlem, versão francesa do original, editado em 1979 pela Dargaud, e conta a história de um contrabaixista de Jazz que protege a namoradade um gangster caída em desgraça por ter sido testemunha de um crime, e é perseguida na noite de New York.
Colorida no original, aqui e ali o preto e branco - a música de Charlie Parker - corta a narrativa como navalhas. Mas talvez que o Jazz seja afinal a história.
L’Homme de Harlem, pg. 19, Guido Crepax, 1979
© Dargaud Editeur 1979